Produtores musicais e um advogado especialista em propriedade intelectual falam a Gama sobre o uso de ferramentas de IA para recriar vozes, inventar duetos e desenvolver novas letras e instrumentos
Da capa de “Escândalo Íntimo”, novo álbum da cantora Luísa Sonza, à criação de “Heart on My Sleeve”, hit produzido com as vozes (falsas) de The Weeknd e Drake, passando pelo finado Frank Sinatra (1915-1998) cantando “Toxic” — ainda que numa voz meio capenga —, música que Britney Spears lançou em 2003, e pelo meme que bombou no TikTok com Ariana Grande entoando a letra do rap de Zé Felipe, a inteligência artificial está hoje em todas as áreas da música, do início ao fim dos processos da indústria.
O uso exagerado de variadas ferramentas de IA que surgem a cada dia no mercado musical, no entanto, levanta algumas questões relevantes. Há profissionais desse ramo que podem perder trabalhos para as máquinas? Até onde é legal e razoável usar aplicativos do tipo para produzir canções? Como ficam os direitos autorais? O universo da música pop vai ficar ainda mais pasteurizado?
Pensando nessas e em outras perguntas, Gama consultou produtores musicais e um advogado especialista em propriedade intelectual, que falaram sobre o tema.
Usos e benefícios da inteligência artificial na música
Em comparação às tecnologias atuais de inteligência artificial que existem para a criação de vídeos, que estão mais desenvolvidas e popularizadas, a IA voltada à música, sobretudo para a parte criativa, ainda caminha mais devagar.
DJ, compositor e produtor musical, Mulú diz que, tecnicamente, algoritmos de IA já são bastante utilizados no Brasil para mixar e masterizar ou para separar, numa gravação, todos os instrumentos da voz, por exemplo. Porém, “criativamente, é algo relativamente novo, com muitas possibilidades para serem exploradas, como simular a voz de artistas que já morreram”, conta ele, que produziu obras de figuras como Duda Beat, Letrux, Luedji Luna e Pabllo Vittar.
Acredito que vai ser um padrão da indústria, principalmente porque há a redução de um custo muito grande
Outra maneira de inserir a IA no cotidiano dos produtores é na pré-produção, quando esses profissionais estão desenvolvendo as chamadas fitas demo — gravações demonstrativas para estudos ou propostas do que pode vir a se tornar uma canção ou até um disco. “Às vezes, você está fazendo uma demo e pensa que determinada música pode ser legal para tal cantor, e utilizando esses algoritmos que fazem simulações de vozes, dá para ter uma boa noção antes”, pontua.
Esse teste virtual prévio, de acordo com Mulú, facilitaria o processo de uma ida ao estúdio, adiantando uma etapa. “Acredito que isso vai ser um padrão da indústria daqui a alguns anos, principalmente porque há a redução de um custo muito grande de levar o artista até o estúdio para gravar a voz, pra saber se vai ficar legal. Assim, você já consegue fazer um pré-produto e, depois, gravar à vera.”
O produtor musical João Marcello Bôscoli fala que, de dez softwares que ele compra para o seu estúdio, sete vêm, obrigatoriamente, com inteligência artificial. Ou seja, esses sistemas, de fato, vieram para ficar. “É um método, um modo, uma tecnologia, e é bom lembrar que inteligência artificial é só um termo genérico para milhares de coisas.”
Bôscoli menciona que um dos usos que faz da IA é na restauração de gravações antigas, com um programa que retira qualquer barulho não desejado de fundo. “O software identifica todos os harmônicos, todas as manifestações desse determinado grupo de ruídos, e você decide se quer que eles apareçam ali ou não. Se não quiser, basta apertar um botão e aquele fundo é suprimido. A voz fica sequinha, como se tivesse sido gravada numa sala acusticamente resolvida. E isso tudo numa velocidade e com uma precisão que não seria possível para um ser humano realizar”, pondera.
Use, mas com moderação!
Essa função relatada por Bôscoli é realizada por IA, mas não é totalmente concluída pela inteligência de uma máquina. Para funcionar, o aplicativo necessita de comandos humanos. E é sobretudo para esse ponto que o produtor musical olha com cautela. “É preciso ter cuidado com o grau de interferência da inteligência artificial, tem um mínimo e um máximo”, comenta.
A intensidade mais elevada, exemplifica, seria a criação de um artista falso, alguém que não saiba cantar, mas que, a partir de referências listadas, “torna-se” um cantor ou uma cantora.
“Você chega no estúdio, diz que gosta de Lady Gaga e Olivia Rodrigo, eu pego essas informações, coloco no computador, aperto um botão e recebo uma base pronta em segundos. Depois, falo que quero uma voz ‘assim’, uma melodia ‘assada’, e pronto”, analisa. “A inteligência artificial que auxilia uma restauração tem um nível, a IA que arruma a voz tem outro nível e aquela que gera uma música e uma letra está em outro patamar.”
João Marcello Bôscoli recorre a uma fala do músico Gilberto Gil no programa “Roda Viva” de 23 de maio de 2022 quando perguntado qual seria a linha máxima da utilização da tecnologia na criação musical. E a resposta do veterano foi: “Acho que para as artes em geral, o limite é o comando humano”.
Não enxergo o ganho quando a inteligência artificial está tirando de mim o meu processo criativo de trabalho
O pensamento de Bôscoli segue a mesma linha. Ele usa IAs como facilitadoras fases da produção, e não vê problemas quanto a isso, mas não atravessa a linha da criatividade. “Não enxergo o ganho quando a inteligência artificial está tirando de mim o meu processo criativo de trabalho. A coisa que eu mais gosto de fazer na vida é fazer música. Utilizo a inteligência artificial em diversas etapas da produção, sem problemas, mas tudo aquilo que é parte do processo criativo eu não abro mão, assim como não abro mão de cozinhar para os meus filhos”, elucida.
No dia a dia, o produtor discorre, nem sempre é possível ir para a cozinha, e, por isso, recorre a marmitas que compra e deixa no freezer. “Só que não é a mesma coisa, estou alimentando os dois, a comida é boa, orgânica, e está tudo certo, mas prefiro eu mesmo escolher, cortar e fazer, pelo prazer disso. Assim, uso a inteligência artificial nas coisas todas que eu não poderia ou não conseguiria fazer, como um utensílio criativo, porém, não quero que ela substitua o meu lance.”
O produtor musical ainda toca na questão do futuro do trabalho, já que a IA é alimentada com dados que passamos a cada uso. “Então, é usá-la como modelo, como uma ferramenta de criatividade sua. O importante é não se deixar ser usado pela inteligência artificial. É um clichê, um conselho de vovô, entretanto, cada vez que você usa a IA, que você fala com ela, você vai dando informações para a ferramenta. E quem disse que no futuro o contratante não vai preferir o produtor IA?”, questiona.
Inteligência artificial, da letra à divulgação
Dono do hit “Michael Douglas”, que explodiu em 2016, João Brasil é um entusiasta da inteligência artificial. Quando fez a canção que repetia “Nunca mais eu vou dormir, nunca mais eu vou dormir. Ih, que isso? Michael Douglas!”, não usou a IA. Agora, ele acaba de lançar o funk “Take Me to the Stars”, composto do início ao fim por plataformas de inteligência artificial.
Para a letra, Brasil acessou o ChatGPT usando comandos do tipo: “Quero que você escreva um rap em inglês, que tenha quatro versos, com o tema viagem espacial”. Depois, para musicar, ele passou a letra que o ChatGPT inventou para o gerador Splash Pro, que devolveu a música com uma melodia. Para extrair o “tamborzão” que aparece no funk, utilizou um programa chamado Moises e, em seguida, editou tudo no Ableton Live.
A masterização foi feita no Ozone, enquanto a arte da capa de divulgação da faixa foi produzida no Midjourney. Por fim, o produtor fez o upload do conteúdo no SoundCloud Impossible Records AI.
João Brasil conta que as máquinas são suas parceiras e mesmo utilizando a inteligência delas, o resultado não vem de bate-pronto e, além disso, as suas referências, da mesma forma que aquelas armazenadas pelas IAs, também são levadas em conta nesse processo.
“Gosto do experimentalismo. E é óbvio que tudo o que eu faço vem de testes, erros e acertos. Se a letra do ChatGPT não está do meu gosto, se chega algo nada a ver, vou lá e mudo uma palavra, vou ajustando. Você usa a inteligência humana também. Eu acho que a IA é uma ‘parceiraça’, não vejo nenhuma desvantagem”, explica.
Cenário pop pasteurizado?
“De certo modo, o pop já é meio pasteurizado”, afirma Mulú. Mas o produtor acredita que a IA vai ajudar a aprimorar o que já existe por meio de mil e uma possibilidades, desde os usos técnicos citados, mais populares, até as criações estéticas, como o aparecimento de vozes inusitadas.
“A voz na música, na canção, é importantíssima. Vide o sucesso da Marina Sena, que tem uma voz bem peculiar, o Poze do Rodo também. Por isso, acredito que vão se criar vozes bem originais a partir de inteligência artificial. Não, necessariamente, só copiar vozes que já existem”, sinaliza.
A inteligência artificial só potencializa o poder criativo de todo mundo, porque você usa a tecnologia a seu favor, ditando o que quer
Os modelos de IA, complementa Mulú, podem ser treinados para combinar aspectos de vozes diferentes. “Isso é uma das coisas que me inspira bastante, principalmente para a timbragem de instrumentos, você consegue misturar características de instrumentos distintos, criando um instrumento que sequer existe acusticamente.”
João Brasil concorda. Segundo ele, as IAs aumentam a criatividade porque a tecnologia é usada em favor de quem produz. “Se você quer fazer um pop atual, vai lá no prompt [mensagem que um sistema operacional envia para solicitar a inserção de informações para executar um comando] e escreve que deseja isso. Um artista experimental diz o que procura e a ferramenta vai para um lado experimental, com ideias de melodias para serem tocadas no saxofone, por exemplo. Então, acho que a inteligência artificial só potencializa o poder criativo de todo mundo, porque você usa a tecnologia a seu favor, ditando o que quer. A máquina ainda não funciona totalmente sozinha”, diz.
Na opinião de João Marcello Bôscoli, existe, sim, uma tendência à pasteurização do cenário, mas no fim das contas ele acha que a criatividade do homem vai se sobressair às máquinas, “com a descoberta de diferentes usos para essa linguagem”.
E salienta também que não existe estilo sem reiteração. “Não há estilo se não há repetição. Você reconhece o Miles Davis ou o Michael Jackson porque eles repetem padrões. Só que quando a repetição é excessiva, começa a ficar ‘ton sur ton’, até sumir na paisagem. Mas penso que tanto o pessoal do pop quanto o pessoal do funk, os que eu conheço, pelo menos, são bastante criativos e acho que eles vão usar essas ferramentas de uma maneira mais inventiva.”
Não quero que gostem de um computador que se passa por mim
De novo, a preocupação dele não é com um sistema pasteurizado, mas sim com a possibilidade de alguns profissionais caírem em desuso e não serem mais contratados porque os contratantes, daqui a algum tempo, podem preferir comprar um software que vai fazer o mesmo trabalho por um preço menor e mais rapidamente. Afinal, esses programas foram adubados (e ensinados) diariamente com conteúdos passados justamente por esses especialistas.
“É por essa questão, por gostar principalmente dessa parte do meu trabalho, que eu não uso a inteligência artificial na minha criação musical. Eu não vou ensinar robô vagabundo nenhum a fazer o que eu sei fazer, que pode até ser ruim ou mediano, mas é o que eu sei fazer, e algumas pessoas vão ouvir e talvez gostar. Então, prefiro que gostem de mim. Não quero que gostem de um computador que se passa por mim”, conclui.
Questões legais, morais e filosóficas
Todo dia, a tecnologia avança e nem sempre as leis conseguem acompanhar esses avanços imediatamente. Segundo Luiz Fernando Plastino Andrade, advogado especializado em propriedade intelectual, tecnologias digitais e proteção de dados, não existe no Brasil nenhuma legislação específica sobre inteligência artificial.
Há, porém, alguns projetos de lei sendo debatidos. “Inicialmente, a maioria deles tinha como foco a responsabilidade pelas decisões de inteligência artificial. Agora, com a popularização do uso da inteligência artificial generativa, as discussões têm sido pautadas também por questões de direitos de imagem, direitos autorais, remuneração e possibilidades de substituição de alguns tipos de trabalho intelectual por inteligência artificial”, lista.
Apesar de ainda não haver uma legislação própria, Andrade explica que algumas leis existentes regulamentam determinados aspectos que vêm surgindo pela utilização de IAs e que podem afetar a sociedade em alguns campos.
Para isso, há, por exemplo, “a Lei de Direitos Autorais, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, o Código Civil, que trata dos direitos de imagem. Temos também algumas disposições da Constituição Federal que falam sobre os aspectos da personalidade. Então, tudo isso se aplica, sim, à inteligência artificial generativa como uma proteção.”
As possibilidades de uso das IAs são sem-número, chegando até a recriação da imagem e da voz de pessoas, no caso aqui, de cantoras e cantores, que já morreram.
A indagação, geralmente, é moral e gira em torno de imaginar qual seria a vontade daquele artista. Se não existir um testamento que fale sobre o tema, autorizando ou não, mesmo que o uso seja consentido pela família — ou tenha sido abalizado por escrito antes do falecimento —, como saber que cantar num determinado dueto, aparecer num telão de show ou num comercial de TV seria ou não da vontade daqueles que já partiram? Para Mulú, essas são discussões filosóficas que a humanidade ainda não conseguiu atingir”.
Fonte: Revista Gama