José Luiz Germano[1]
Marcio Martins Bonilha Filho[2]
Thomas Nosch Gonçalves[3]
Prefacialmente, cabe ressaltar que a o escopo deste artigo é contribuir para a pulsante discussão sobre os extratos e a Lei nº 14.382/22, com suas principais características, tendo em vista a sua necessária implementação.
Serão refutados, nestas breves reflexões, dois recentes artigos[4] sobre o tema, de autoria de Ricardo Campos e Fábio Rocha Pinto e Silva, sob a metodologia de perguntas e respostas, com intuito de suscitar a reflexão e o debate na comunidade jurídica.
Neste sentido, destacamos as seguintes perguntas extraídas das afirmações contidas no artigo de Fábio Rocha Pinto e Silva, a serem refletidas:
- O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está ouvindo as vozes do atraso? Existe alguma minoria de tabeliães incomodados com avanço tecnológico?
- A objetivação dos extratos gera maior segurança para sociedade e o mercado? A inteligência artificial, defendida no artigo, pode substituir a intervenção estatal? Existe realmente compra e venda pura e simples? A simplificação de registro, afastando a qualificação registral e a fiscalização do Poder Judiciário, não afronta o devido processo legal?
- Os EUA são um exemplo de sucesso no campo registral? O registro de notícias, defendido pelo autor Fábio Rocha, tem maior eficiência?
- O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está ouvindo as vozes do atraso? Existe alguma minoria de tabeliães incomodados com avanço tecnológico?
Trouxe perplexidade esta indagação, notadamente porque o CNJ se apresenta com uma postura de vanguarda e de concretização dos direitos fundamentais aos jurisdicionados.
De maneira objetiva, podemos destacar como avanços do Conselho Nacional de Justiça, na seara do Registro Civil das Pessoas Naturais, inúmeros procedimentos instaurados, a saber: a) Reconhecimento de Filiação Biológica (Prov. CNJ no 16/2012); b) Registro Tardio de Nascimento (Prov. CNJ no 28/2013); c) Reconhecimento de Filiação Socioafetiva (Provimento CNJ nº 63/2017); d) Alteração de Nome e Gênero de Pessoa Transgênero (Provimento CNJ no 73/2018); e) Alteração de Patronímico (Provimento CNJ no 82/2019); f) Alteração de Nascimento de Criança Sem Sexo Definido (Provimento CNJ no 122/2021), dentre outros.
Na esfera notarial e registral, a Resolução 35 do CNJ causou imensurável o avanço para o Estado brasileiro. Esse movimento de extrajudicialização foi fruto da disruptiva Lei 11.441/07, que possibilitou a lavratura de inventários, divórcios, separações e partilhas em tabelionatos de notas.
De acordo com o levantamento estatístico realizado pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg/BR)[5], Cartório em Números, desde 2007, podemos extrair que:
“1,8 milhões de atos de inventários foram realizados pelos Tabelionatos de Notas do Brasil no período de janeiro de 2007 a novembro de 2021.
127.022 mil sobrepartilhas foram realizadas em todo o país entre 2007 e novembro de 2021
10,6 bilhões de reais economizados, segundo o estudo Justiça em Números, conduzido em 2020, pelo Conselho Nacional de Justiça, pois cada processo que entra no Judiciário custa em média R$ 2.369,73 para o contribuinte. ” (grifo nosso).
Isso significa dizer que o erário brasileiro economizou cerca de 10,6 bilhões de reais com a delegação desse serviço aos Cartórios de Notas. Além disso, houve acréscimo de eficiência na prestação de serviço público, verificando-se que os prazos dos inventários diminuíram de 10 anos em alguns casos judiciais para 15 dias em um cartório.
Esse resultado quantitativo e qualitativo só pode ser lançado à conta do trabalho de juristas convocados pelo CNJ, que possibilitou esse fenômeno de desjudicialização com segurança jurídica, sem qualquer prejuízo aos jurisdicionados.
Aliás, esses elogios são facilmente percebidos nos votos do Superior Tribunal de Justiça, que admitiram uma maior extrajudicialização, na análise de diversos acórdãos que ampliaram a utilização extrajudicial, a exemplo dos casos de abertura e cumprimento de testamento nos tabelionatos de notas
Vale lembrar, especialmente pelo contexto histórico – temos que aprender com os acertos e erros do passado – que, no ano da promulgação da Lei 11.441/07, foi instituído um Grupo de Estudos pela Portaria CG 01/2007, publicada no Diário Oficial de 11.01.2007, visando à implementação da Lei no âmbito notarial e suas implicações no ordenamento jurídico.
Esse grupo foi composto pelos seguintes integrantes: José Roberto Bedran, José Renato Nalini, Marcelo Martins Berthe, Marcio Martins Bonilha Filho, Vicente de Abreu Amadei, Vitore André Zilio Maximiano, Márcia Regina Machado Melaré e Paulo Tupinambá Vampré.
O referido Grupo elaborou importantes conclusões sobre aplicabilidade da lei, destacando-se as seguintes: i) alternatividade, quanto à escolha das vias judicial e extrajudicial. ii) possibilidade de desistência de uma das vias para a eleição da outra; iii) prescindibilidade da homologação judicial das escrituras públicas de inventário e partilha, bem como as de divórcio e separação consensual, as quais são títulos hábeis para o registro civil e o registro imobiliário.
Ainda, especificamente quanto ao divórcio ou separação consensual, recomendou-se que as serventias disponibilizem sala ou ambiente reservado e discreto para atendimento das partes. Trata-se de uma irradiação do princípio da dignidade da pessoa humana, que só poderá ser praticado por delegatário de serviço público, que já provou e continua provando sua obstinação na concretização da justiça.
Nota-se a preocupação do CNJ de criar um devido processo legal extrajudicial, conforme brilhante artigo da Flávia Pereira Hill[6].
Nesse contexto, podemos destacar ainda o Provimento 100, que tratou da criação do e-notariado, em um dos momentos mais difíceis da história recente da humanidade, a pandemia do COVID-19.
E aqui, é necessário promover um importante recorte central, no momento de maior desespero nacional e complicação estrutural do Estado, em face dos cenários pandêmicos, o CNJ não mediu esforços para implementar a inovadora plataforma e impedir que o jurisdicionado brasileiro fosse impedido do ter acesso aos direitos fundamentais. Todos os cartórios trabalharam de forma ininterrupta, atendendo a população de forma remota.
Nesse cenário, foi criado o principal mecanismo de controle epidemiológico da história de nosso país – o Portal da Transparência. O Portal da Transparência do Registro Civil, desenvolvido pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), teve indicação ao Prêmio Innovare, na categoria Justiça e Cidadania – que premia ações de modernização na área jurídica – pela importância do serviço prestado especialmente durante a pandemia da Covid-19, com a indispensável contribuição do CNJ.
O sistema, inaugurado em 2018, disponibiliza informações e dados estatísticos sobre nascimentos, casamentos e óbitos, entre outros conteúdos relacionados. Em março de 2020, a plataforma lançou um módulo específico com informações sobre registros de óbitos por Covid-19, abastecido em tempo real com dados detalhados sobre os registros de óbitos decorrentes da doença, fornecendo à população informações obtidas por meio da Central de Informações do Registro Civil (CRC).
O escopo do projeto foi ampliado ao longo do tempo, primeiramente, com o lançamento de um módulo de Doenças Respiratórias, seguido por outro com as Doenças Cardíacas, tudo veiculado pela imprensa nacional[7].
Outrossim, alguns Governos estaduais utilizaram dos confiáveis dados da ARPEN/BR, como o Governo do Estado do Pará[8].
Vale frisar que todo este desempenho de eficiência social não CUSTOU NADA PARA OS COFRES PÚBLICOS. O investimento foi fruto do próprio sistema extrajudicial, que engloba todas as especialidades, com dinheiro investido dos delegatários para cumprimentos desse múnus.
Aliás, não é a primeira vez que os Oficiais, com dinheiro privado, investem na estrutura do cartório para atenderem normativas do CNJ. A propósito disso, lembramos aqui do Provimento 74, que dispôs sobre padrões mínimos de tecnologia da informação para a segurança, integridade e disponibilidade de dados para a continuidade da atividade pelos serviços notariais e de registro do Brasil.
Além do esforço dos registradores, os tabeliães, ao aderirem à plataforma do e-Notariado, cumpriram sua obrigação, concretizando direitos fundamentais e amparando milhares de famílias que sofreram diversas dificuldades vivenciadas no cenário caótico nesse período. E aqui rechaça-se completamente o argumento segundo o qual os tabeliães estão incomodados com avanço tecnológico, demonstrando-se esse equívoco nos números abaixo mencionados.
Segundo o CNB-CF[9], em um ano, a plataforma e-Notariado já contabilizou mais de 71 mil atos notariais eletrônicos, sendo 53 mil escrituras e 18 mil procurações realizadas por videoconferência. Tais atos vêm em franca expansão, mês após mês, sendo que no mês de abril 2021 foram atingidos mais de 10,8 mil atos digitais realizados por 1,7 mil cartórios, o que mostra a crescente interesse da sociedade pelo ambiente digital do notariado e a proatividade dos tabeliães.
Além das escrituras e procurações, o e-Notariado traz importantes números em seus módulos lançados. Cedida pelo Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo (CNB/SP) e integrada à plataforma em novembro do ano passado, a Central Notarial de Autenticação Digital (CENAD), já conta com mais de 411 mil páginas autenticadas.
O módulo proporcionou em nível nacional um serviço de grande importância, pois possibilita que documentos originais sejam desmaterializados em formato PDF, autenticados e assegurados pela rede blockchain dos notários, a Notarchain, podendo ser encaminhados pelo cidadão por meio eletrônico a qualquer outra pessoa ou órgão que, por sua vez, poderá materializar tal documento novamente em outro Cartório de Notas.
Outra grande marca do notariado online são os mais de 61,2 milhões de CPFs enviados ao módulo de Cadastro Único de Clientes (CCN). Esse módulo, integrado à plataforma de identificação de pessoas do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), tornou-se uma das principais e mais importantes bases de dados do país, o que garante uma ferramenta de validação completa e segura aos atos online.
A propósito, quando lançado o módulo foi citado pela diretora de inteligência-financeira do COAF, Ana Amélia Olczewski, que falou sobre a importância da ferramenta, na possibilidade de “oferecer contribuição valiosa para tornar mais eficiente a atuação de notários em prol do sistema de Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo (PLD/FT)”.
O outro módulo lançado em dezembro de 2020, destinado à emissão de certidões digitais de atos notariais, já somava na época mais de 9 mil requerimentos, o que comprova mesmo diante da pandemia e da complexidade de investimento para cada serventia notarial, houve aumento expressivo, que hoje, certamente é muito maior.
Logo, de maneira objetiva, concluímos que em nenhum momento o CNJ está atrasado ou ouvindo vozes do passado, tendo em vista os fatos e dados estatísticos que comprovam a posição vanguardista do CNJ e do extrajudicial em sua totalidade. Ressalta-se assim, a pujante postura dos tabeliães na busca da modernização digital, que inclusive, está prestes a completar 10 anos do Provimento 22/2013, que regulamentou a materialização e a desmaterialização de documentos como atividade dos tabeliães de notas e registradores civis de pessoas naturais com atribuição notarial no Estado de São Paulo, de relatoria do Des. Antonio Carlos Alves Braga Júnior.
2. A objetivação dos extratos gera maior segurança para sociedade e o mercado? A inteligência artificial, defendida em dos artigos pode substituir a intervenção estatal? Existe realmente compra e venda pura e simples? A simplificação de registro, afastando a qualificação registral e a fiscalização do Poder Judiciário, não afronta o devido processo legal?
Essa ilimitada objetivação do processo, por meio dos extratos, gera um dos maiores riscos ao retrocesso social. É evidente que o mercado demanda maior celeridade das negociações e de circulação de riqueza. Contudo, é necessário avançar de forma consciente, sem colocar em risco todas as conquistas desse microssistema extrajudicial, que tem previsão no artigo 236 da Constituição Federal.
Ademais, esse assunto deve ser tratado como possível inconstitucionalidade material, e nesse sentido, corroboram alguns doutrinadores que sustentam que esse microssistema constitucional seria uma cláusula pétrea, protegida pelos direitos análogos, pela importância e segurança jurídica dessas atividades, conforme preconiza José Joaquim Gomes Canotilho.
Seria a hipótese, para ilustrar, da municipalidade tutelar o registro de imóveis ou de alguma secretaria do governo formalizando a vontade das partes em um negócio jurídico, onde se daria primazia a interesses políticos e não à efetiva vontade das partes.
Seria possível adicionar ainda, a criação de extratos sem a irradiação e intervenção do Estado, na figura do notário, a exemplo da tutela tributária e da manifestação de vontade. Essa temerária situação pode causar um abalo no desenvolvimento e na circulação de riquezas em nosso país.
De igual modo, caso o problema seja a agilidade, devemos perquirir uma melhora nos prazos para confecção dos atos, como, inclusive, a que foi implementada pela festejada Lei 14.382/22, e não necessariamente a desconstrução de institutos milenares.
Não devemos substituir os instrumentos sem o necessário estudo dos impactos positivos e negativos, até por isso, que imaginamos que o Dr. Fábio Rocha, em outro artigo, publicado em renomada coletânea, propôs a aplicação dessa extratificação, mencionando a experiência internacional que se tem aplicado aos bens móveis, como podemos extrair das leis modelo OEA e UNCITRAL. De qualquer forma, não nos parece o mais adequado, à luz das deliberações anteriores do CNJ, especialmente pelo prognóstico técnico do referido Conselho.
De outro bordo, vale refutar dois perigosos argumentos que renomado autor defendeu: primeiro, a possibilidade da extratificação por meio da inteligência artificial, substituindo dois delegatários de serviço público (notário e registrador), que são profissionais do direito e com seu trabalho propiciam às pessoas maior segurança jurídica. Não se trata de apego ao atraso!
Como confiar na inteligência artificial e essa automatização, se os próprios criadores da inteligência artificial estão preocupados? Elon Musk assinou carta que pediu “pausa” no desenvolvimento de inteligência artificial. Segundo o empresário, e uma série de autoridades e empresas tecnológicas que assinaram o documento, a nova tecnologia representa “riscos profundos para a sociedade e a humanidade”[10].
Como só essa atitude não bastasse, matérias recentes apontam essa preocupação na prática, na medida em que um golpe, envolvendo Inteligência Artificial, causou prejuízo milionário a usuários. É o exemplo do Projeto Harvest Keeper, lançado em janeiro deste ano, em meio a esses fenômenos, defendendo a inteligência artificial como a solução de tudo, que curiosamente causou a aplicação de golpe milionário.
O Harvest Keeper alegava ser um “projeto inovador” baseado em Inteligência Artificial que “otimiza o processo de negociação para obter lucro máximo”, exatamente como o ilustre autor Fábio Rocha defende em seu artigo.
Contudo, o projeto em blockchain, arquitetado na automatização da inteligência artificial, permitiu a prática de um golpe de quase US$ 1 milhão (cerca de R$ 5,2 milhões) em seus usuários[11].
Dessa forma, parece cristalino o risco baseado apenas na análise econômica do direito, na simplista ideia de substituir por extratos, sem a necessária intervenção humana, exercida por titular da delegação legitimamente investido, cuja atividade garante a segurança jurídica e irradia paz social.
Bem por isso, afigura-se fundamental a atuação dos delegatários para garantir a boa técnica e sobretudo assegurar a responsabilidade pelos atos praticados, até mesmo com seu patrimônio pessoal. Aliás, aludidos serviços contam ainda com a fiscalização do Poder Judiciário.
Nesse sentido, Sergio Jacomino[12], registrador imobiliário, já havia alertado sobre os problemas da responsabilidade, destacando-se a tríplice formação – civil, administrativa e penal – na medida em que é presumível nesse modelo diferenciado e estranho do atual, seja pelos possíveis extratos particulares, seja pela inteligência artificial, a ocorrência de muitos problemas na fixação da responsabilidade (e individualização da pena).
Introduzirão temas inéditos em debate – erros cometidos pelo SERP, desvio de finalidades pelo uso indevido de dados pessoais, fraudes na autenticação etc. O autor pergunta de maneira objetiva: “A quem se imputará a responsabilidade?”.
Diante do exposto, como fica a responsabilidade civil no caso de erro da inteligência artificial? Como sabemos, no caso dos delegatários, o artigo 22 da Lei 8.935/94, e o artigo 38 da Lei 9.492/97 estabelecem que o Estado detém responsabilidade objetiva, sem prejuízo da via regressiva, nesse sentido, segundo (STF):
“O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem danos a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa. O Estado possui responsabilidade civil DIRETA, PRIMÁRIA E OBJETIVA pelos danos que notários e oficiais de registro, no exercício de serviço público por delegação, causem a terceiros. STF. Plenário. RE 842846/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 27/2/2019 (repercussão geral) (Info 932) ”.
Ainda sobre o extrato, Marcelo Augusto Santana de Melo, define os contornos dos extratos eletrônicos: “uma síntese de um título formalmente constituído que resume suas características essenciais, inclusive as cláusulas que podem gerar qualquer possibilidade de nulidade, mesmo que relativa, consubstanciando-se numa aparência secundária de um título que pode ou não corresponder à realidade”.
Por outro lado, vale rememorar a atividade secular da função notarial, inclusive de aconselhamento jurídico, que possibilitou e possibilita conferir segurança do ordenamento jurídico aos mais caros negócios das pessoas.
De fato, a função notarial tem a finalidade de assegurar certeza jurídica aos atos particulares, mediante emissão de declarações dotadas de autenticidade. Para tanto, o notário exerce um assessoramento jurídico das partes, dotado de imparcialidade, através da formalização das vontades para o instrumento notarial com roupagem jurídica.
Ao discorrer sobre a atividade notarial, Leonardo Brandelli[13] afirma que:
“A aplicação do seu mister de acordo com os ditames do Direito, e o zelo pela autonomia da vontade. Quanto ao primeiro aspecto, revela o dever do notário de desempenhar sua função em consonância com o ordenamento jurídico; deve receber a vontade das partes e moldá-la de acordo com o Direito, dentro de formas jurídicas lícitas. (…) O outro aspecto contempla a obrigação do tabelião de velar pela autonomia da vontade daqueles que o procuram; deve ele assegurar às partes, dentro do possível, uma situação de igualdade, bem como assegurar a livre emissão da vontade, despida de qualquer vício, recusando-se a desempenhar sua função caso apure estar tal vontade eivada por algum vício que a afete. ”
Na verdade, as atribuições do notário decorrem da necessidade de investir uma pessoa com a função de fé pública, “para que os atos praticados por ela ou com a sanção dela se revistam de tais características, que passem a ter aptidão plena para a produção de efeitos jurídicos” [14].
Desse modo, a atividade notarial atua como um verdadeiro método de prevenção de litígios, tanto no aspecto de formalização da vontade das partes, quanto na perpetuidade da prova, diferentemente do que ocorre com os extratos, sem os mínimos atos de intervenção de um profissional do direito capaz de equilibrar as relações jurídicas.
Nesse aspecto, caso o negócio jurídico seja lavrado na presença do tabelião, todo acontecimento será lançado no livro de notas e arquivado perpetuamente, revestido da fé pública inerente à importante função delegada.
Em clássica obra, no ano de 1904, Joaquim de Oliveira Machado[15] define a função notarial:
“É, pois, um empregado público de ordem judicial. E’ o encarregado de ouvir e converter em instrumento aulhentico e solemne, voluntario ou necessario, as estipulações do contractante, a última vontade das pessoas aptas para testar.
São estas as funcções capitaes.
Ha outras accessorias taes como o reconhecimento de firma, as publicas formas, os registros facultativos e obrigatorios, as certidões em theor, os protestos por letras commerciaes, as posses extra-judiciaes.
Accrescentamos as expressões instrumento necessario ou voluntario para significar que, além da fórma puramente facultativa, ha outras obrigativas taes como nos casos de hypotheca ou penhor, esponsaes ou venda de immoveis, pois que taes convenções sem o instrumento público são insubsistentes no seu todo. O tabellião ora exerce o seu ministério ex vi da livre vontade do contractante ora por disposição imperativa da lei.”
Desta maneira, a complexidade da sociedade hodierna e a mutação das relações negociais, com a proliferação dos negócios plurilaterais e contrato coativos, muitas vezes com a patente falta de imparcialidade nas tratativas negociais, os notários surgem como verdadeiros facilitadores capazes entregar verdadeira segurança jurídica[16].
Em nosso ordenamento jurídico, não há um Código do notariado. Há a respeito do tema a Lei n. 8935/94 e várias disposições esparsas no Código Civil. O artigo 6º da referida Lei[17] dispõe sobre a competência dos notários, estabelecendo uma tríplice responsabilidade à frente desse importante múnus público.
O primeiro inciso estabelece o dever de assessoramento, o qual consiste na explicação didática dos fatos e sua formalização jurídica. Essa formalização implica em transformar a narração das partes na entabulação do negócio, revestida da fé pública notarial.
Desse processo de formatação da vontade das partes no negócio jurídico adequado irradia-se uma série de princípios, particularmente o da juridicidade na qualificação prévia. Logo, destaca-se a importância de os notários serem profissionais do direito, pois sem o conhecimento prévio do direito privado, não há como criar o ato notarial seguro e eficaz.
Nesse sentido, não há como afirmar que existe uma “compra e venda pura e simples”, isso porque a quantidade de vicissitudes envolvidas, sejam subjetivas – em relação as partes -, sejam objetivas – em relação ao objeto -, demandam um exercício intelectual de função notarial, ao passo que é analisada de forma personalizada todos aspectos que envolvam esse negócio jurídico, isto é, jamais um negócio jurídico será exatamente igual!
Sem falar na ausência de análise subjetiva no combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo, cuja verificação é imposta ao prudente arbítrio do tabelião em um cenário onde a inteligência humana não foi substituída (Provimento 88 do CNJ).
José Augusto Mouteira Guerreiro[18] define a função notarial como o ato de formar um instrumento público ou para muitos a escritura pública[19], transmitindo com precisão a vontade das partes, para que se amolde com juridicidade ao estabelecido no ordenamento jurídico.
O segundo inciso revela a necessidade de comprovação do preparo técnico do notário. É intuitivo que o notário não é um mero redator de extratos ou minutas; ele tem o poder-dever de intervir nos atos e negócios.
Esse dever está encampado no princípio de assessoramento e, à guisa do exemplo emblemático, quando, numa relação entre divorciandos, na qual temos uma disparidade de assessoria jurídica, fica evidente a necessidade de um equilíbrio substancial na relação, sendo protagonista o papel imparcial do notário, para que não haja insegurança jurídica ou econômica para a parte mais vulnerável, ainda que elas estejam assistidas por seus advogados.
Com efeito, ainda que o notário tenha sido convocado por uma das partes, não defenderá apenas seus interesses, mas será fiel ao ato notarial ajustado, uma vez que atua não só como agente de confiança das partes, mas como profissional do direito que exerce relevante função estatal e profissão constitucionalmente qualificada, daí porque a inconstitucionalidade, quando eliminamos esse longa manus estatal, com uma típica roupagem de magistrado voluntário.
Celso Fernandes Campilongo, ao analisar os extratos contidos na MP 1.085/2021, posteriormente convertida na Lei 14.382/2022, concluiu que jamais os extratos poderão substituir a escritura pública:
“Por isso, os “extratos” jamais poderão substituir, equiparar-se ou almejar efeitos análogos aos das escrituras. “Extratos” são elaborados de forma muito menos rigorosa e muito mais insegura, se comparados às escrituras. Pecam pela forma defeituosa. Sua forma, inevitavelmente menos plena, equipara o “extrato” a mero documento privado, desprovido das solenidades exigidas pela transferência de Direitos Reais e sem a típica estruturação negocial, qualificação notarial e força probatória dos atos de fé pública dignos da atuação notarial e registral, na forma do direito pátrio.
O extrato eletrônico está para a escritura pública assim como a ementa está para o acórdão ou o preâmbulo para a Lei. São estruturas infungíveis: o extrato não substitui a escritura; a ementa não substitui o acórdão; e o preâmbulo não substitui a Lei. Não se executa a ementa do acórdão, nem se aplica o preâmbulo da Lei, por mais importantes que possam ser. Executa-se a decisão. Aplica-se a Lei. Do mesmo modo, os extratos eletrônicos não fazem as vezes das escrituras e dos contratos, nem podem servir de base empírica e fatual para tabeliães e registradores certificarem fé pública. Falta aos “extratos” a materialidade objetiva imanente aos documentos aptos a receber fé pública. ” (grifo nosso).
Corrobora no mesmo sentido de Celso Fernandes Campilongo, o registrador imobiliário, Marcelo Augusto Santana de Melo[20] na medida em que reforça o raciocínio analógico da cognição do magistrado e da cognição do registrador:
“Uma das principais funções do registrador é a análise do título, também chamada qualificação, que é o juízo de valor que o registrador realiza sobre a legalidade dos documentos e sobre a validade e eficácia dos negócios jurídicos contidos neles. Observem que a qualificação registrária, cotejando-se com outros sistemas registrários, equivale a uma sentença de mérito de primeira instância anômala, já que não gera coisa julgada”.
Segundo Celso Campilongo, há um perigoso prognóstico, de sérios riscos à segurança jurídica e ao interesse público caso adotado extrato eletrônico, ao passo que seria uma verdadeira destruição do próprio sistema notarial e registral que vem demonstrando sua eficiência ao longo de séculos na humanidade.
Nesse mesmo sentido, Flávio Tartuce e Carlos E. Elias de Oliveira[21], apresentam uma perspectiva de atrofiamento da qualificação registral, mesmo que possa reduzir alguns exageros na mencionada qualificação, os autores entendem que aumentará os riscos do ingresso de fatos jurídicos indevidos nos registros públicos.
Corrobora-se nesse sentido, Celso Fernandes Campilongo, ao discorrer sobre a prevenção da lide, e esse movimento de desjudicialização, que só é possível aos notários e aos registradores pelo fato de desempenharem ampla e exauriente atividade cognitiva dos fatos ao executarem suas funções. Por isso, devem conhecer amplamente das especificidades – manifestação de vontade – do ato ou do negócio jurídico a ser lavrado ou registrado sob sua responsabilidade.
Caso essa ampla cognição lhe seja tolhida, mediante instituição do extrato eletrônico, o notário e o registrador ficam impossibilitados de conferir fé pública ao ato, aumentando exponencialmente o risco de sobrecarga do Poder Judiciário, da insegurança jurídica e de prejuízos a todos segmentos da sociedade e do mercado.
Por fim, ciente da limitação de espaço e escopo dessas reflexões, não poderíamos deixar de invocar importante contribuição de Niklas Luhmann, na medida em que a confiança não tem qualquer valor moral, não é algo bom ou ruim.
Esse sentimento de confiança é um mecanismo, que precisa de uma estrutura de redução da complexidade social. Representa uma antítese da incerteza em face do futuro. Ou seja, uma espécie de prudência fática, um prognóstico, em que confiará em um arquétipo pré-definido e avaliado pelas autoridades competentes, notadamente os tabelionatos e registradores imobiliários.
3. Os EUA são um exemplo de sucesso no campo registral? O registro de notícias, defendido pelo autor Fábio Rocha, tem maior eficiência?
Esse tema não é novo, mas sempre retorna com um discurso equivocado de sistema mais rápido, mais econômico e relativamente simples. Isso não é verdade, e há estudos comprobatórios que esse sistema de registro de notícias é extremamente inseguro e perigoso para o desenvolvimento econômico do país.
Em matéria especial de Priscilla Cardoso, de Washington (EUA), publicada na Revista Cartórios[22], janeiro e março de 2019, chama a atenção pelo título:
“Estados Unidos passado a limpo: a verdade por trás do mito. Visto como modelo por muitos brasileiros, sistema registral e notarial norte-americano sofre paralisações, promove bolhas imobiliárias, permite fraudes investigadas pelo FBI e a atuação de intermediários sem formação jurídica e fiscalização do Poder Judiciário”. (grifo nosso)
E ainda, na mesma matéria:
“Bolha imobiliária e a fragilidade do registro bancário nos Estados Unidos. Há exatos 12 anos, a maior potência do mundo desestabilizou a ordem econômica mundial ao financiar empréstimos hipotecários fragilmente controlados pelos bancos. Recessão durou 1 ano e meio, seis milhões de americanos perderam suas casas e outros oito milhões seus empregos.” (grifo nosso)
As próprias manchetes da matéria retratam que a realidade defendida pelo autor Fábio Rocha é extremamente perigosa especialmente no tocante a necessidade de implementação de um custoso sistema de seguros (inerente ao citado sistema norte americano).
Em verdade, nesse capítulo, o exemplo dos Estados Unidos da América serve para ilustrar o como ‘não proceder’. Verdade seja dita, nossa estrutura técnico-jurídica é motivo de orgulho internacional[23], porquanto nosso sistema jurídico manteve-se hígido e não se influenciou com crise vivida no país norte-americano.
A propósito, cumpre acentuar que não estamos advogando contrariamente aos extratos e a previsão legal. A rigor, estamos defendendo a continuação da higidez e a segurança do nosso sistema normativo, atualizando-se os procedimentos, por exemplo, a escritura pública emitida por extrato, e jamais alterar o núcleo do sistema normativo em si.
Ou seja, serão realizados os extratos por notários, a escritura pública estratificada, mantendo a atual sistemática, com todos os ganhos mencionados pelo renomado autor, permitindo assim a fiscalização do Poder Judiciário de todas as operações, responsabilidade civil e demais efeitos inerentes ao sistema extrajudicial, além da clara e competente assessoria jurídica na formalização e transformação da vontade do usuário na juridicidade do ato em si, o que resulta sempre em uma desjudicialização preventiva.
Assim, concluímos as reflexões do presente artigo:
- Conhecer a história e não repetir os erros do passado é tarefa da nossa atual geração. Devemos estar atentos às alterações precipitadas e conclusões tendenciosas sem a devida pesquisa quantitativa e qualitativa.
- Devemos compatibilizar a atualização do procedimento, o efeito da escritura já lavrada, ou seja, a possibilidade de emissão do extrato da escritura, com os pontos mais importantes para célere e simplificada qualificação registral. Dessa forma, preservamos toda capacidade de assessoria notarial e humana prévia, aproveitando o que tem de melhor nos extratos.
- Isto é, um extrato com fé pública e todos os efeitos inerentes à profilaxia notarial, fiscalização tributária, fiscalização do Poder Judiciário, dentre tantos outros efeitos que merece um artigo próprio para explorar essa sindérese notarial dos extratos.
- Nem tudo o que é “novo” é necessariamente bom. Exemplos disso são graves males relacionados com as redes sociais e os crimes cibernéticos. Assim, defendemos os extratos com a fé pública notarial, sendo a regra do sistema, e a permissão excepcional no âmbito do SFI e SFH. Os tabeliães devem elaborar procedimentos seguros para emissão dos extratos, que naturalmente derivam da escritura pública, mantendo a higidez e a segurança jurídica. A cogitação da ilimitada generalização do uso dos extratos é algo que deve ser evitado porque coloca em risco fundamentos seculares do nosso direito, que até hoje muito bem fizeram à nossa sociedade e ao mercado.