Por Marcio Martins Bonilha Filho e Thomas Nosch Gonçalves
O escopo deste artigo é prospectar, exclusivamente na seara legislativa, sobre a indagação como a proibição da prestação compensatória ou mitigatória abusiva, em sede de estudos de impacto ou outras liberações de atividade econômica no direito urbanístico, pode influenciar e reverberar em toda iniciativa privada.
Introdução
Os problemas urbanísticos assolam todos os municípios brasileiros, tais como moradia, transporte, especulação imobiliária, precariedade do saneamento básico e principalmente a divisão territorial e a consequente segregação do espaço. (SANTOS, 2006. p. 169).
Há aumentos significativos nos loteamentos fechados. Esse último ocorreu, principalmente, pela inclusão de dispositivo da lei 13.465/17, na Lei do Parcelamento do Solo Urbano (Lei 6.766/79), que autorizou expressamente a figura dos loteamentos fechados.
Segundo a Pesquisa do Mercado de Lotes Urbanizados, no Estado de São Paulo, elaborada pela SECOVI-SP, realizada no segundo trimestre de 2018, os lançamentos são quase 50% para os abertos e 50% para os fechados.
O loteamento e parcelamento do solo são matérias interdisciplinares, na qual se destacam os aspectos urbanísticos e ambientais, encampados na função social da cidade. Nesse conjunto normativo, houve importante evolução na LLE (Lei da Liberdade Econômica, 13.874/19), que criou uma medida de limitação à regulação do Estado, no tocante as medidas compensatórias em impactos urbanísticos.
Compatibilizar a livre iniciativa e o livro exercício da atividade econômica do empreendedor imobiliário, em face da função social da cidade, ou seja, utilizar corretamente os instrumentos urbanísticos mediante regulação para o desenvolvimento das cidades, constitui assunto desafiador e atual no cenário nacional.
O instrumento administrativo para avaliação desses quesitos é o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV). Basicamente, seu objetivo é analisar e informar previamente a` municipalidade competente, quanto ao prognóstico da implantação de empreendimentos e atividades impactantes, privadas ou públicas, em áreas urbanas, a partir da ótica da harmonia entre os interesses particulares e o interesse da coletividade de modo a:
a) evitar desequilíbrios no crescimento das cidades;
b) garantir condições mínimas de qualidade urbana;
c) zelar pela ordem urbanística e pelo uso socialmente justo e ambientalmente equilibrado dos espaços urbanos. (Schvarsberg, Benny; Martins, Giselle C.; Cavalcanti, Carolina B. (org.) 2016), p.13)
Essa regulamentação, elaborada pela municipalidade, deverá prever critérios para a proposição de medidas, equipamentos ou procedimentos, de natureza preventiva, corretiva ou compensatória, que serão adotados para mitigação dos impactos negativos, em cada fase do empreendimento.
É aqui o destaque e desafio do presente trabalho, o próprio manual editado pelo Ministério das Cidades1, em seu volume 4, da coleção cadernos técnicos de regulamentação e implementação de instrumentos do Estatuto da Cidade, indica legitimidade nas contrapartidas sem frisar em nenhum momento a necessidade de pertinência.
Essas contrapartidas nem sempre têm vinculação com o empreendimento, resultando na exigência municipal diversa do efetivo impacto no empreendimento proposto, criando verdadeiros abusos por parte dos gestores públicos.
Nesse sentido, a Lei da Liberdade Econômica inseriu importante dispositivo de proteção ao empreendedor imobiliário e do próprio desenvolvimento das cidades, obrigando uma demonstração de certa pertinência temática do empreendimento com a área afetada, e não outro desejo específico do gestor municipal, ainda que legítimo para sociedade, que será analisada a seguir.
Noções gerais de parcelamento e a lei 6.766/79 (Lei do Parcelamento do Solo Urbano).
O tema parcelamento do solo pode ser analisado em perspectivas, civilista, urbanística e ambiental. (AMADEI e AMADEI, 2014).
A civilista tem a ótica privada, devem ser respeitados os limites dos proprietários, viés eminentemente patrimonialista, antes da Constituição de 1988 e o Código Civil de 2002, diplomas que foram protagonistas para deslocamento do vetor axiológico da pessoa humana, o rompimento da ideia patrimonialista advinda do Código Napoleônico de 1804 e CC de 1916.
O princípio da livre destinação de terras permite aos proprietários todas as formas espaciais possíveis, exceto as limitações fixadas por lei, que preveem mínimos e máximos (PONTES DE MIRANDA, 2012, p. 38).
Na urbanística, (AMADEI e AMADEI, 2014, p.04) não é visualizável a propriedade urbana fora do contexto da função social da cidade, também impossível se admitir a divisão territorial alheia à perspectiva urbanística, principalmente, no que tange às políticas públicas.
Sob a perspectiva ambiental, a propriedade e sua respectiva divisão territorial, devem buscar o meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225, da Constituição Federal), refletindo no próprio Estatuto da Cidade, artigo 2º, I, que prevê a garantia do direito à cidade sustentável.
Ainda, sobre a função social, é necessário que a cidade cumpra sua função social, quando os elementos urbanos atingem um equilíbrio dinâmico (MARRARA, 2007, p.182). Nesse sentido, todo o projeto de loteamento, inclusive as medidas compensatórias do EIV (Estudo de Impacto de Vizinhança), deve estar dentro do planejamento e gestão do ambiente, prospectando todos as vicissitudes urbanísticas.
Segundo (SILVA, 2012, p. 434-435), o consentimento do Poder Público para parcelar o solo para fins urbanos confere ao particular a faculdade de exercer em nome pessoal, no interesse próprio e à sua custa e riscos, uma atividade que pertence ao Poder Público Municipal. Assim, a avaliação sobre a possibilidade, ou não, de autorizar, numa determinada porção do território, loteamentos ou desmembramentos, depende de juízo de oportunidade e conveniência do Município, perquirindo sempre a concretização dos direitos fundamentais.
Essa discricionariedade do agente público pode resultar em abusividade e, em última instância, em improbidade administrativa. Essa consequência, não é incomum. Em matéria publicada no portal da Municipalidade de Embu das Artes em São Paulo2, em 27/09/10, a Câmara Municipal aprovou um loteamento fechado, em compensação à construção de um Posto de saúde em outro endereço. Na referida matéria, uma das vereadoras fundamentou que, caso a empresa loteadora não ajude, quem vai sofrer é o povo.
Ou seja, a ausência de pertinência com o impacto urbanístico e ambiental é patente, criando um verdadeiro balcão de negócios, fomentando ainda mais a especulação imobiliária. É verificável que a inclusão do dispositivo urbanístico na LLE, que impede o abuso em medida compensatória, traz solução para esse entrave procedimental administrativo.
A LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA E SEU DISPOSITIVO URBANÍSTICO
A lei 13.874/19 instituiu a Declaração de Direitos da Liberdade Econômica, alterando substancialmente as relações privadas e a regulação do Estado. Dotado de forte interdisciplinaridade, incluiu importante marco legislativo no plano urbanístico.
Prevê normas de proteção a livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica, onde dispõe sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador.
Além disso, cria um vetor axiológico, na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, do trabalho e urbanístico.
Nesse diapasão, os contratos interempresariais, que obtiveram um grande relevo nesse marco teórico legislativo, fortemente marcados pela autonomia e boa-fé, encontram-se em constante dialética tensão, tanto pela liberdade, quanto pela igualdade, polarizadas pela noção do empresário e de empresa, implicando assim, na busca e obtenção do lucro (MARTINS-COSTA, 2018, p.196).
Do ponto de vista urbanístico, é o inciso XI, do artigo 3 º da citada lei, que assinala o avanço em matéria urbanística:
“Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal.
XI – não ser exigida medida ou prestação compensatória ou mitigatória abusiva, em sede de estudos de impacto ou outras liberações de atividade econômica no direito urbanístico, entendida como aquela que: (grifo nosso)
a) (VETADO);
b) requeira medida que já era planejada para execução antes da solicitação pelo particular, sem que a atividade econômica altere a demanda para execução da referida medida;
c) utilize-se do particular para realizar execuções que compensem impactos que existiriam independentemente do empreendimento ou da atividade econômica solicitada;
d) requeira a execução ou prestação de qualquer tipo para áreas ou situação além daquelas diretamente impactadas pela atividade econômica; ou
e) mostre-se sem razoabilidade ou desproporcional, inclusive utilizada como meio de coação ou intimidação;”.
Cabe uma nota introdutória do mandamento nuclear do parágrafo único do artigo 170, da Constituição Federal, na medida em que é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
É um verdadeiro alicerce do sistema, autorizando e democratizando a possibilidade do empreendedor dentro do território nacional. Ainda que exista uma regulação necessária do Estado, ela não pode impedir o livre exercício da atividade empresarial.
Nesse ponto, destacam-se fórmulas indiretas de impedir o exercício ou até mesmo por ato legitimamente administrativo, composto por todos elementos e requisitos, a impedir ou dificultar o exercício, por exemplo, das prestações mitigatórias abusivas.
O inciso XI acima transcrito é especificamente inovador, na proteção do arcabouço empresarial e legítimo protetor da sociedade, que visa impedir medidas abusivas e obrigar a vinculação direta ao projeto, evitando assim, atos discricionários eivados de mérito duvidoso, prejudicando em última instancia até a probidade administrativa do ato expedido pela agente público competente.
Na verdade, ambas alíneas do referido inciso têm conexão, além da abusividade inerente às medidas compensatórias, elas buscam afastar qualquer tipo de contraprestação do empreendedor, de objeto que não tenha pertinência com o impacto de vizinhança, e destacam-se nas seguintes ideias principais:
1) não solicitar medida mitigatória de projeto ou necessidade prévia, já constatada pela municipalidade
2) utilizar o recurso privado para compensar determinado ponto urbanístico que não terá impacto direto ou indireto na implantação do empreendimento.
3) que a medida não transborde os efeitos da circunscrição territorial afetada e
4) manter proporcionalidade com a possibilidade de econômico-financeira da empresa e do empreendimento, além de evitar especulação imobiliária e escolha específica de empresas.
Suas alíneas estão em rol exemplificativo, tem objetivo de nortear o agente público no exame da oportunidade e conveniência da expedição da licença ou autorização do empreendimento. Dessa forma, todo e qualquer medida que se mostre incompatível, deve ser questionada.
Essa previsão faz sentido, no tocante à liberdade e proteção dos empreendedores que, muitas vezes, estão envolvidos em um “balcão de negócios”, conforme mencionado no capítulo anterior. A ideia é permitir em igualdade de condições, todos empreenderem, sem distinção, evitando assim, especulações imobiliárias e eventuais improbidades administrativas.
Além disso, ainda é possível utilizar desse artifício para privilegiar determinadas empresas em detrimento de outras, provocando ainda mais os problemas urbanísticos sabidamente conhecidos.
CONCLUSÕES
É dever de todos os municípios atualizarem sua legislação, veiculando de forma expressa a proibição de medidas compensatórias abusivas.
No entanto, enquanto não seja editada legislação competente, os empreendedores imobiliários não podem estar à mercê de atos discricionários que não demonstrem a real vinculação, devendo ser aplicada imediatamente a legislação federal para viabilização do empreendimento sem a necessária compensação.
Por fim, imperativo que se atue de forma preventiva na difusão dessa importante alteração, evitando assim a indesejável judicialização da matéria, buscando adequar a correta regulação normativa do Estado.
1 “E comum notar questionamentos sobre a legitimidade do Poder Público em cobrar contrapartidas (na forma de medidas mitigadoras ou compensatórias) pela instalação de empreendimentos que estão completamente de acordo com a legislação urbanística vigente.” Estudo de Impacto de Vizinhança: Caderno Técnico de Regulamentação e Implementação/ Benny Schvasrberg, Martins, Giselle C., Kallas, Luana M. E.; Cavalcanti, Carolina B.; Teixeira, Letícia M.. Brasília: Universidade de Brasília, 2016.
2 Acesso 31/05/2020: http://www.cmembu.sp.gov.br/noticias/1131/camara-aprova-novo-loteamento-com-compensacao-de-area-institucional
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AHUALLI, Tânia Mara; BENACCHIO, Marcelo. (Coord.) Direito Notarial e Registral: Homenagem às Varas de Registros Públicos da Comarca de São Paulo. São Paulo: Quartier Latin, 2016.
AMADEI, Vicente Celeste; AMADEI, Vicente de Abreu. Como Lotear uma Gleba: O Parcelamento do solo Urbano em Todos os Seus Aspectos essenciais (Loteamento e Desmembramento), 4a. Ed., Campinas, Millenium, 2014.
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BRASIL. Lei nº 13.874/2019 de 20 de setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica;. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm . Acesso em: 25 maio 2020.
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SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 434-435.
SOARES, Lucélia Martins. Estudo de Impacto de Vizinhança, In Estatuto da cidade (Comentários a Lei 10.257/2001. São Paulo: Malheiros Editores, 2014, 4 edição.
Fonte: Portal Migalhas.