A legítima criação de Fundo para custear serviços gratuitos dos Registros Civis das Pessoas Naturais

Por Marcio M Bonilha Filho, sócio da área de Registros Públicos

Na área dos Registros Públicos, o Brasil conta com vários tipos de cartórios.

Tecnicamente, a terminologia correta é serviço público delegado, onde são desempenhadas as atividades extrajudiciais.

Para facilitar as diferentes atribuições, a Lei Federal nº 8.935/94, que regulamentou o artigo 236, da Constituição Federal, explicitou a separação dos cartórios extrajudiciais, de acordo com a especialidade, assim definidos: Cartório de Notas, Tabelionato de Protestos, Cartório de Registro de Imóveis, Cartório de Registro de Títulos e Documentos, Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas e Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais.

Para melhor compreensão e evitar o indesejável emprego do ‘juridiquês’ neste artigo, tomo a liberdade de utilizar a nomenclatura ‘cartório’.

Resumidamente, na essência, o Cartório de Notas, também conhecido como Tabelionato de Notas, é o cartório que lavra escrituras públicas de procuração, compra e venda, testamentos, inventários, partilhas e divórcios extrajudiciais, ata notarial, dação em pagamento, cessão de crédito, doação, demais atos jurídicos que reclamam solenidade, além de autenticação de documentos e reconhecimento de firmas.

Tabelionato de Protestos é o cartório onde são lavrados títulos executivos (duplicatas, cheques, etc.) não pagos no prazo, do que resulta o apontamento do título não honrado, com a intimação do devedor. Em caso de não pagamento, o título é protestado, com a consequência de levar o nome do devedor inadimplente à lista de maus pagadores, etc.

Cartório de Registro de Imóveis é aquele conhecido como ofício predial, onde são registrados os contratos e escrituras públicas de aquisição de imóveis e demais títulos que criem algum direito ou restrição, em relação ao bem imóvel (hipoteca, alienação fiduciária, usufruto, servidão, incorporação, condomínio, penhora, inalienabilidade, etc.). São praticados atos de averbação ou registros, além de emissão de certidão, contendo informações sobre o imóvel, histórico da cadeia dominial e do nome do titular dominial. Em relação a essa especialidade, incide a regra da delimitação da área territorial abrangida pelo Registro de Imóveis, de sorte que os atos referentes aos imóveis situados nessa região devem ser feitos no Registro de Imóveis que abranja essa área, em observância ao princípio da territorialidade.

Cartório de Registro de Títulos e Documentos é destinado a registrar documentos para a sua conservação, lembrando que a certidão vale como documento original e terá efeito perante toda a sociedade (erga omnes). As notificações extrajudiciais são de atribuição desses Cartórios.

Cartórios de Registro Civil das Pessoas Jurídicas são aqueles incumbidos de registrar as pessoas jurídicas não empresariais (as pessoas jurídicas empresariais são registradas na Junta Comercial de cada Estado). Nesses Cartórios são registrados as Associações e Fundações.

Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais são as unidades onde registrados o nascimento, casamento, óbito, interdição, emancipação, adoção e todas as alterações desses registros, tais como alteração de nome, do estado civil, etc., envolvendo o histórico da vida civil dos cidadãos.

Dentre as diversas naturezas e especializações, cabe destacar que os serviços praticados pelos Registros Civis das Pessoas Naturais são aqueles mais diretamente vinculados com a população, tanto que são considerados “ofícios da cidadania”.

Bem por isso, o registro civil das pessoas naturais é aquele que confere o direito humano fundamental, que possibilita o exercício da cidadania e dignidade da pessoa humana, fornecendo o primeiro documento da vida do cidadão, representado pela certidão de nascimento.

Diante desse contexto, na consideração que vários atos lá praticados são gratuitos e a receita em regra não é elevada, estabeleceu-se a criação de um fundo para custear serviços gratuitos, realizados pelos Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais.

A origem da criação desse fundo é antiga, tanto que, no Estado de São Paulo, sempre na vanguarda, desde 1988 existe Lei Estadual para custear os serviços gratuitos realizados pelos RCPN. Por ocasião do advento dessa Lei Estadual, ela foi chamada pelos profissionais da área de “Lei Robin Hood”, pois retirava parcelas das serventias mais rentáveis (Notas, Protesto, Imóveis) para entregar ao Registro Civil das Pessoas Naturais, menos rentáveis e, às vezes, deficitários.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal foi instado a enfrentar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, que questionou a lei, que criou o Fundo de Apoio ao Registro Civil das Pessoas Naturais do Estado o Amazonas (Farpam).

Na referida ADI 5.672, a Procuradoria questionava a lei amazonense 3.929/2013, que criou o Farpam, com a finalidade de custear os atos praticados gratuitamente pelos registradores civis das pessoas naturais e a manutenção das serventias deficitárias. A fonte da receita é a parte dos recursos provenientes da aquisição do selo eletrônico de fiscalização e dos emolumentos dos serviços extrajudiciais.

Prevaleceu, por ampla maioria, a diretriz traçada no voto da Relatora, Ministra Cármen Lúcia, que julgou improcedente a ADI, em julgamento realizado pelo Pleno, em sessão virtual, encerrada no último dia 18 de junho.

A ministra Cármen Lúcia rejeitou a tese de usurpação de competência da União para legislar sobre registros públicos, sustentando que a lei amazonense restringiu-se à criação e a regulamentação do fundo, sem alterar a disciplina relativa à validade, à forma, ao conteúdo ou à eficácia dos atos praticados pelos delegatários dos serviços notariais e de registro no Amazonas.

O STF reconheceu, ainda, que os valores a serem arrecadados não constituem receita decorrente de imposto, mas têm natureza jurídica de taxa, acrescentando que o fundo tem natureza pública, evidenciada pela finalidade social do custeio de atos praticados gratuitamente pelos registradores civis das pessoas naturais e à manutenção das serventias deficitárias.

Nesse sentido, a Ministra relatora fez remissão ao fato de o STF reconhecer a validade de normas estaduais que preveem a destinação de parcela dos emolumentos recebidos pelos notários e registradores a Fundos especiais do Poder Judiciário, rematando em seu voto que a administração do Fundo é viabilizada por convênio, sob a supervisão direta da Corregedoria-Geral da Justiça do Tribunal de Justiça do Amazonas.

Com esses judiciosos argumentos, o STF validou a lei do Estado do Amazonas que criou fundo para custear serviços gratuitos praticados pelos registros civis das pessoas naturais.

A decisão, além de técnica, ao apreciar os questionamentos da Procuradoria-Geral da República, ostenta um importante viés de sensibilidade e de conhecimento sobre as atividades eminentemente sociais desempenhadas pelo ‘ofício da cidadania’.

A criação do fundo foi concebida para corrigir uma injustiça, num quadro onde diversos e relevantes atos são praticados gratuitamente pelos Registros Civis das Pessoas Naturais, sem contar, em contrapartida, quem pagaria pelos serviços. São inúmeras certidões de nascimento e de óbito emitidas com isenção de emolumentos.

Sem essa receita, os cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais passaram a enfrentar dificuldades de ordem financeira, apresentando prejuízos.

Em boa hora, o Estado do Amazonas editou a lei que cria o fundo para custear os serviços gratuitos, o que foi placitado pelo STF, a merecer aplausos, pois os cidadãos carentes seguirão recebendo as certidões com a gratuidade e as serventias passarão a receber pelos serviços, graças ao fundo, equilibrando, assim, as finanças.