Por Rodrigo Barcellos
Após longa tramitação, entra em vigor a Lei nº 14.181/2021, reformando o CDC para prevenir e tratar da relevante questão do superendividamento do Consumidor [1].
O texto foi elaborado por uma comissão de grandes juristas brasileiros, baseado, em especial, na legislação francesa.
A vacina
Na parte da prevenção, a lei pretende alterar a realidade, objetivando a concessão de crédito mais responsável.
Respeitando a estrutura do Código do Consumidor, o legislador incluiu, entre os princípios da Política Nacional das Relações de Consumo, o “fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores” e a “prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor”.
Como destacado por EROS GRAU, o Art. 4º do CDC é uma “norma objetivo”: indica a finalidade, o objetivo da Política Nacional das Relações de Consumo. Tal norma é de vital importância na interpretação do CDC: todas as demais normas do CDC “instrumentam a realização dos objetivos, com base nos princípios enunciados no próprio art. 4º”. E o ilustre professor conclui que os objetivos e os princípios norteiam a aplicação do CDC: “o intérprete que deles se aproximar estará aplicando o CDC. Aquele que deles se afastar estará descumprindo a lei”[2].
De agora em diante, portanto, para atingir o objetivo de atender as “necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo” previstos no caput do Art. 4º, deve-se atender aos princípios (i) de fomentar ações para educar financeiramente os consumidores (inciso IX); e (ii) de prevenir e tratar o superendividamento do consumidor, evitando que ele seja excluído socialmente (inciso X).
Conhecedores da estrutura do Código, a comissão de juristas incluiu, outrossim, entre os direitos básicos dos consumidores previstos no Artigo 6º do CDC, “a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas” (inciso XI) e “a preservação do mínimo existencial, nos termos da regulamentação, na repactuação de dívidas e na concessão de crédito” (inciso XII).
A essência do Código do Consumidor está disposta do artigo 1º ao artigo 7º. Em tais artigos, o legislador (i) especifica os princípios e direitos básicos (artigos 4º e 6º); (ii) deixa explícita a origem constitucional do Código e serem as normas de ordem pública e de interesse social (Art. 1º); (iii) esclarece a hipótese de incidência da norma, com seus elementos objetivos e subjetivos (Arts. 2º e 3º); (iv) elenca os instrumentos que o poder público pode contar para executar a Política Nacional das Relações de Consumo (Art. 5º); (v) admite o diálogo das fontes nesse microssistema jurídico completo, porém poroso (Art. 7º, caput); e (vi) prevê a responsabilidade solidária dos fornecedores (parágrafo único do Art. 7º). Os demais cento e doze artigos do Código vão detalhar a aplicação dos princípios e direitos básicos previstos nos artigos 4º e 6º do CDC.
Seguindo a estrutura do Código, a prevenção do superendividamento vem detalhadamente regulada em capítulo próprio (Capítulo VI-A).
A Lei deixa claro que somente os devedores de boa-fé são protegidos pela norma, como os consumidores que, quando assumiram o compromisso financeiro, tinham fontes de recurso, mas que, em um segundo momento, tiveram um “acidente da vida” (perda de emprego ou renda, divórcio, nascimento de filho, etc.) e deixaram de ter recursos suficientes para cumprir com a obrigação. Paralelamente aos consumidores que não contribuíram ativamente para a insolvência, existem aqueles que abusaram do crédito. Nesse último caso, de superendividados ativos, existe uma zona cinzenta, devendo ser apurado o grau de consciência do consumidor no momento da tomada do crédito, para definir a boa ou a má-fé no caso concreto.
A norma traz o conceito de “mínimo existencial”, o que não se confunde com a “manutenção da qualidade de vida”. O consumidor deve ter o mínimo para manter a sua dignidade (Art. 1º, II, da CF), possibilitando o atendimento das suas necessidades básicas (se alimentar, pagar as contas de consumo, etc.).
O direito básico do consumidor à informação, previsto no art. 6º, III, do CDC e detalhado em diversos artigos do Código, é objeto de previsão nos Arts. 54-B e 54-D do CDC, estabelecendo o que deve constar na oferta de crédito, dando a oportunidade de o consumidor ter a consciência da obrigação assumida.
Também objetivando a concessão de crédito responsável, os Arts. 54-C e 54-G do CDC proíbem certas condutas abusivas do fornecedor (Art. 6º, IV, do CDC) na oferta do crédito.
O Art. 54-F do CDC estabelece a conexão dos contratos de fornecimento de produtos e serviços com os contratos assessórios de crédito nas hipóteses previstas nos incisos I e II, prevendo os efeitos nos parágrafos 1º, 2º, 3º e 4º do mesmo artigo [3].
O remédio
O tratamento está disciplinado no Capítulo V, buscando a conciliação do consumidor com todos os seus credores, com apresentação de plano de pagamento (experiência que já teve êxito no Rio Grande do Sul).
Infrutífera a conciliação, instaura-se o processo de superendividamento, no qual fica assegurado, aos credores, o recebimento de, no mínimo, o principal corrigido monetariamente. A lei não está a autorizar o calote do consumidor, portanto.
Assim, se se considerar a dificuldade de se recuperar tais créditos atualmente, a lei, diferentemente do que pode parecer em uma primeira análise, pode favorecer os credores, abrindo nova possibilidade de recebimento de, ao menos, o principal corrigido de créditos considerados perdidos.
Se forem exitosas as conciliações ou o processo de superendividamento, a Lei que ora entrou em vigor pode gerar efeitos positivos microeconômicos, com o resgate daqueles consumidores que estavam fora do mercado de consumo, e macroeconômicos, ao se ter em conta os bilhões de reais que seriam reincluídos no mercado, pelos milhões de consumidores superendividados que iriam voltar a consumir e a pagar parceladamente os seus débitos.
Nesse diapasão, pensando no Direito como uma instância da realidade [4], o grande problema dos consumidores superendividados levou o Legislador a alterar o texto normativo e, em consequência, o novo direito posto terá o poder de alterar a realidade. E aí está a importância da aplicação concreta do Direito como pensamento ao serviço da vida [5]. Veremos todos se a lei atingirá os ambiciosos efeitos pretendidos.
[1] Pude discutir o tema com algumas turmas de Direito Empresarial da Pós-Graduação da FGV Direito SP, debate que foi muito rico, razão pela qual aproveito aqui para agradecer aos meus alunos.
[2] Revista de Direito do Consumidor nº 5, p.188/189. Vicente Ráo, já em 1952, clamava pela necessidade de “restaurar o significado, o alcance e a fôrça dos princípios gerais, ora ameaçados, senão de destruição, quando menos de esquecimento.” E acrescenta que “o jurista deve intervir e reafirmar os princípios básicos do Direito, cujo sacrifício importaria o da inteira ordem jurídica e o rompimento brutal com o passado”. (O Direito e a Vida dos Direitos, 1º vol., São Paulo, Max Limonad, 1952, pp. 7 e 11).
[3] Sobre a rede de contratos conexos e suas consequências jurídicas, BARCELLOS, Rodrigo. O Contrato de Shopping Center e os Contratos Atípicos Interempresariais, São Paulo, Atlas, 2009, págs. 89/96.
[4] O Direito “é elemento do modo de produção social”, atuando “também como instrumento de mudança social, interagindo em relação a todos os demais níveis – ou estruturas regionais – da estrutura social global” (Eros Roberto Grau, O Direito posto e o Direito pressuposto, São Paulo, Malheiros, 6ª ed., 2005, pp. 19-20).
[5] A que se referiu Luís S. Cabral de Moncada, na obra Filosofia do Direito e do Estado.