Para especialistas, artistas têm buscado atalho para o estrelato em músicas já assimiladas pelo público, mas tiro pode sair pela culatra
Coração Cachorro, Lovezinho, a versão feminista de Mulheres e até Million Years Ago. Lançadas em épocas distintas e com sonoridades bastante diferentes, essas canções teriam quase nada em comum não fosse por um detalhe: todas foram (ou ainda são) alvo de disputas envolvendo direitos autorais.
Embora a legislação brasileira que versa sobre a propriedade intelectual seja uma das mais restritivas do mundo, e justamente por isso, alvo constante de críticas, o público tem sido cada vez mais surpreendido com a retirada de canções das plataformas.
O episódio mais recente ocorreu há cerca de duas semanas, quando as compositoras da versão feminista da música Mulheres, cuja original foi popularizada por Martinho da Vila, denunciaram ser vítimas de “censura” por parte do autor da canção, Toninho Geraes.
“É com muito pesar que noticio que a versão feminista de Mulheres, original de Toninho Geraes, foi censurada e será retirada de todas as plataformas digitais”, anunciou a artista nas redes sociais.
Segundo o advogado de Geraes, Fredímio Biasotto Trotta, a gravadora dele, Universal Music, cedeu os direitos da canção às cantoras Doralyce e Silvia Duffrayer, mas não tinha legimidade para tal.
“Não houve plágio. Não há tentativa de passar uma obra pela outra. A música é Mulheres. O problema é que houve modificação da letra e uma obra literomusical só pode ter sua letra ou melodia modificada ou, no caso, deturpada, com autorização expressa do autor, verso por verso. O que não houve”, alega a defesa do músico.
Toninho também reinvindica seus direitos na canção Million Years Ago, lançada por Adele em 2015. Segundo o músico, a música contém trechos idêntidos a de Mulheres Gareth Cattermole.
Outro caso recente de disputa de direitos autorais ocorreu com Treyce. Ela ainda não conseguiu entrar em acordo com a Sony sobre os direitos da canção, que utiliza um trecho de Say It Right, de Nelly Furtado.
Disputa internacional
Há cerca de um ano e meio, Toninho Geraes também acusou a cantora britânica Adele de plagiar a mesma canção e a a transformar no refrão de Million Years Ago, lançada em 2015. Segundo Trotta, o produtor da artista, Greg Kurstin, que assina a faixa com ela, mudou apenas uma nota da introdução de Mulheres.
A briga ainda está nos tribunais e também envolve a Universal. Isso porque Toninho Geraes descobriu, posteriormente, que sua editora era a mesma de Adele. “Vai ser processada, por conflito de interesses, já que não o apoiou em relação ao plágio e calou-se sobre o fato, descoberto, de ser, também, editora da própria plagiadora”, revela o advogado.
A despeito dos comentários de que Adele sequer sabia da existência da música, o advogado destaca que a MPB, especialmente aquela que se fez até os anos 1990, é muito visada por artistas que buscam um atalho para completar um disco e chegar ao sucesso. “É um gênero muito rico do ponto de vista melódico, harmônico e rítmico. E é estudado nas maiores escolas de música do planeta”, pondera.
“Alguns, querendo emplacar ilicitamente um sucesso ou completar um álbum (como foi o caso da Adele e Kurstin), vão beber indevidamente na fonte da rica MPB e, sem pudor, plagiam uma de suas obras. Imagino que pensem assim: ‘O autor é da América do Sul, ele nunca vai saber e, se souber, não vai ter forças para um processo judicial’. Mas não é bem assim”
Assim como a versão alternativa de Mulheres, a canção Lovezinho, uma das mais reproduzidas no Carnaval deste ano, foi alvo de reivindicação. A melodia do refrão é inspirada na canção Say It Right, de Nelly Furtado, o que fez a Sony pedir a retirada da faixa de todas as plataformas.
A socióloga, Dani Ribas, especialista em comportamento de público e professora de music business, sugere uma explicação para situações como essa serem cada vez mais comuns. “Com o pós-pandemia e a interrupção de receitas de execução pública de shows, o setor entendeu que mercado de obras é uma receita perene e importante”, explica.
“Então há desde compra de catálogos até estratégias equivocadas juridicamente de gravar uma obra ou parte dela sem autorização prévia do autor, apenas para pegar carona em melodias já plenamente assimiladas pela sensibilidade das pessoas. Como um ‘atalho’ para o estrelato numa época em que tudo disputa a atenção das pessoas e algo já conhecido e assimilado consegue esse feito de maneira mais fácil”, afirma a especialista.
“Mas é um tiro que sai pela culatra. Lovezinho saiu das plataformas pois não houve acordo entre as partes”, pondera Ribas.
Ela esclarece que o plágio de obras intelectuais sempre existiu, mas que atualmente é mais fácil identificá-lo: “A música circula mais e mais rápido por meio das plataformas. Então o autor original consegue perceber e notificar a justiça mais rapidamente do que antes. A impressão é a de que há mais casos — e pode até haver mesmo — mas fato é que nossa percepção muda quando temos mais notícias sobre o assunto”.
Dani ainda aposta que o assunto deve ficar ainda mais quente com o uso da Inteligência Artificial na produção de novas canções. “Pode influenciar as discussões sobre todas as formas de direitos autorais”, conclui.
Falta de entendimento sobre a legislação
Na avaliação do mestre em Direito Civil e especialista em Propriedade Intelectual, Privacidade e Proteção de Dados e Direito de Informática, Luiz Fernando Plastino, outra razão para a incidência de disputas envolvendo direitos autorais é a falta de entendimento sobre a legislação.
“As disputas de hoje em dia parecem vir menos de um desconhecimento da lei e mais de uma divergência de entendimento da lei. Todos sabem que você não pode copiar a música de alguém, por exemplo, mas muito se discute quais os limites de um remix, de um mash-up, de uma versão… Nesses casos, mesmo para os advogados às vezes pode ser complicado dizer quando termina o uso liberado pela lei e quando começa a infração”, explica o profissisonal.
“A regra geral é a proibição de usar as músicas dos outros, exceto pequenos trechos, ou fazendo paráfrases ou paródias, e sem prejudicar a exploração comercial da obra ou ferir os interesses do autor de maneira injustificada. Isso às vezes pode ser algo difícil de dizer sem uma análise bem profunda, a menos que seja um caso óbvio de cópia ou de uso indevido”, analisa Plastino.