Mesmo manifestando desejo em testamento, artistas podem ter vontade contestada após a morte.

Mesmo manifestando desejo em testamento, artistas podem ter vontade contestada após a morte.

O colombiano ganhador do Nobel de Literatura, Gabriel García Márquez, morreu em 2014, deixando uma obra inacabada. No entanto, ele verbalizou publicamente que não queria que o livro fosse lançado. “Deve ser destruído”, disse o escritor, em menção aos próprios manuscritos.

Dez anos depois, na data em que García Márquez completaria 97 anos, em 6 de março, o romance foi publicado, a contragosto do escritor, sob o título “Até Agosto”.

E fica a pergunta: será que, mesmo o escritor tendo expressado sua vontade em vida (mas nada registrado oficialmente), a atitude dos filhos pode ser considerada legal?

“Toda manifestação de vontade feita em vida, para surtir efeitos após a morte, deve ser feita por testamento”, explica Virgínia Arrais, 32ª Tabeliã de Notas do Rio de Janeiro e Professora de Direito Notarial e Registral.

Na avaliação de Luiz Fernando Plastino, especialista em Propriedade Intelectual do escritório Barcellos Tucunduva Advogados (BTLAW), deixar uma obra inédita, como essa de Gabo, não é um direito patrimonial. “É outro tipo de direito autoral, o qual a lei determina que será exercido pelos sucessores do autor após a sua morte. Assim, existe divergência sobre a necessidade de os herdeiros realmente respeitarem esse tipo de determinação de última vontade que não implica aproveitamento econômico”, conta.

O especialista lembra de outros casos literários famosos sobre pedidos não atendidos. “Se alguém quer garantir que uma obra não seja publicada de jeito nenhum, precisa destruí-la. É possível dispor dos direitos de edição, reprodução e adaptação de uma obra em testamento, por exemplo, transferindo-os para alguém de confiança, mas temos exemplos famosos em que nem mesmo isso foi suficiente para evitar sua publicação, como as obras de Franz Kafka, poemas de Roberto Bolaño e, aqui no Brasil, o poema Os Filhos da Coruja, escrito por Graciliano Ramos sob pseudônimo e publicado este ano contra sua vontade manifestada em vida”, relembra.

E o que pode acontecer caso um dos irmãos não concordasse com a publicação desse livro odiado pelo colombiano? “Todo testamento ou escritura pública declaratória podem ser contestados, em função do livre acesso ao poder judiciário. Entretanto, isso não significa que a demanda será julgada procedente. Para que seja julgado procedente, o interessado deverá desconstituir a presunção de validade dos instrumentos públicos, provando a existência de vício de consentimento ou social na manifestação de vontade do autor do testamento ou da escritura pública no momento de suas lavraturas”, diz Virgínia.

*Virgínia Arrais – 32ª Tabeliã de Notas da Cidade do Rio de Janeiro, Doutoranda e mestre em direito. MBA em Poder Judiciário pela FGV/Law e em Gestão de Pessoas pela USP/SP. Especialista em direito notarial e registral, é ex-coordenadora da Escola de Escreventes do Colégio Notarial Brasileiro-RJ. Cursou Negócios Internacionais na Universidade da Califórnia de Berkeley/USA.

*Luiz Fernando Plastino – Advogado especializado em Propriedade Intelectual do escritório Barcellos Tucunduva Advogados (BTLAW). Doutor em Direito Civil pela USP – Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Civil pela USP – Universidade de São Paulo. Pós-graduado em Direito de Informática pela ESA-OAB/SP – Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo. Bacharel em Direito pela USP – Universidade de São Paulo. Membro do Centro de Solução de Disputas em Propriedade Intelectual.