Isso vale também para personagens, características, marcas, logomarcas, itens de eventos, sons, músicas entre outros bens comercializados in-game
Não é novidade que a indústria do games mudou muito ao longo de sua história. O mercado que existia há 30 anos já não existe mais. Ou melhor, existe, porém se apresenta de forma diferente. Com o passar do tempo a forma de consumir games foi se alterando, e as empresas foram se moldando a novas realidades e, muitas vezes, sendo “obrigadas” a criar formas de monetização diferenciadas.
Dando um salto no tempo, passamos, basicamente, de fichas de arcades para conteúdos digitais em um lapso temporal muito curto. Poderíamos aqui traçar uma linha do tempo descrevendo os diversos métodos de monetização da indústria, mas esse não é o foco do texto. Aqui trataremos de um “produto” específico: bens virtuais ou virtual goods.
Na prática, quando falamos em “bens virtuais”, estamos nos referindo a tudo aquilo que é comercializado dentro dos jogos eletrônicos. Todo e qualquer item, skin, música, arte, som, ou seja, todo conteúdo comercializado in-game e que altere ou incremente a experiência do usuário é chamado (equivocadamente, a meu ver) de “bem virtual”.
Isso porque, logo de cara há controvérsia acerca da nomenclatura “bem”, já que, na prática, eles funcionam e são comercializados muito mais como serviços do que produtos. Isso se dá pelo fato de que todos os componentes que integram um jogo eletrônico fazem parte daquela obra digital e tudo ali inserido é protegido por leis e tratados de Direitos Autorais, sendo propriedade intelectual das desenvolvedoras, e não dos jogadores.
Mais adiante veremos como os bens virtuais se distinguem de bens reais e a sua existência no ordenamento jurídico, mas, de antemão, fica o spoiler: não, aquela skin rara que determinado jogador ganhou em um campeonato e que, dentro da comunidade, vale uma fortuna, não é de sua propriedade e não deve ou pode ser comercializada, pelo menos não sob a ótica da legislação jurídica atual.
Primeiramente é importante estabelecer a diferença entre bens materiais e bens virtuais, mas para isso precisamos entender o conceito do termo “bem”.
Francisco de Assis Toledo, renomado jurista e magistrado brasileiro, costumava definir bem jurídico como “toda situação social que o direito objetiva proteger contra lesões”, que nada mais é de que uma interpretação do limite da proteção de determinada coisa com base nos princípios constitucionais.
Se quisermos uma definição sobre a ótica mais legalista, vemos que nosso ornamento jurídico trás, no Livro II do Código Civil, entre os artigos 79 ao 103, algumas disposições acerca do que é considerado bem.
Em uma busca rápida pelos artigos citados é fácil localizar bens móveis, imóveis, fungíveis, consumíveis, dentre outros, porém, não se localiza o “bem virtual”. Isso se dá pelo fato de que tal conceito não existia à época em que a legislação brasileira foi criada, se existiam, não eram tão relevantes para a sociedade a ponto de chamar a atenção do legislador.
O fato é que, hoje em dia, tais “bens” possuem extrema relevância (econômica e financeira, inclusive). Com o aumento exponencial da indústria digital como um todo, cada vez mais os bens virtuais são explorados economicamente por toda sociedade, levantando o debate acerca da sua natureza jurídica e existência enquanto bens econômicos.
Sob o aspecto dos jogos eletrônicos (games), “bens virtuais”, por definição comum e geral da comunidade, são “objetos não-físicos adquiridos para utilização em comunidades online ou jogos online” e, sob a ótica material é certo que “não têm valor intrínseco e (…) são intangíveis.”[1]. Trata-se de um conceito básico e amplo, mas que atinge ao propósito introdutório do tema.
Sob a ótica jurídica, podemos tentar definir (de forma forçada!) o “bem virtual” como uma mistura entre bens fungíveis e os consumíveis, cuja definição está na própria lei:
“Art. 85. São fungíveis os móveis que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade.
Art. 86. São consumíveis os bens móveis cujo uso importa destruição imediata da própria substância, sendo também considerados tais os destinados à alienação.”
Isso se considerarmos que podem ser substituídos por outros da mesma espécie, o que é fácil de se imaginar em conteúdos digitais. Sendo todo conteúdo digital baseado em códigos binários, em sua grande maioria, bastaria a replicação daquele código para que o bem fosse substituído por outro da mesma espécie (o que não se aplicaria para NFTs, por exemplo, mas isso é assunto para outro texto).
Além disso, há determinados conteúdos digitais que são “consumidos” quando utilizados dentro do jogo, tais como munições especiais, roupas temporárias lootboxes e as próprias moedas virtuais dos jogos. Uma vez utilizados, não poderão sem restabelecidos, visto que já consumidos. Talvez esse seja o máximo que se consiga chegar de uma analogia entre a definição legal da nossa legislação civilista e os bens virtuais.
O fato é que, como já adiantamos, os bens virtuais estão muito mais próximos do conceito de serviço do que do conceito de bem, isso porque, itens virtuais não possuem valor monetário real ou resgatável, mas apenas valor dentro daquele jogo em específico e enquanto aquele jogo perdurar. Por exemplo, a maioria dos conteúdos digitais (itens virtuais) não são transferíveis e não podem ser comprados e vendidos entre os jogadores. Óbvio que há exceções, quando há permissão da desenvolvedora para tanto, mas a regra geral é a vedação a tal prática.
É importante lembrar, ainda, que itens virtuais não são bens materiais e, portanto, não possuem, em termos jurídicos, todas as características de posse – já que ao usuário não exerce visibilidade de domínio e muito menos uso ou destinação econômica virtual do item – ou propriedade – já que o usuário não é o titular do bem, não podendo exercer plenamente todas as faculdades inerentes à propriedade (usar, gozar ou fruir, dispor e reaver).
Personagens, skins, características, marcas, logomarcas, itens dos eventos, sons, músicas, dentre outros, são bens integrantes da propriedade intelectual das desenvolvedoras e seus licenciantes, protegidos pela legislação de direitos autorais. Todos esses elementos são integrantes do jogo e não podem ser extraídos e reutilizados fora dele. O que se pretende dizer é que o jogo é uma obra única e indivisível. E isso quem determina é a desenvolvedora, já que ela é a criadora daquela obra.
Juridicamente, o que ocorre em casos de jogos eletrônicos é uma licença ou cessão de uso daquela propriedade intelectual, ou seja, a disponibilização temporária e limitada daquele jogo e suas características aos usuários. Isso, via de regra, se encontra expressamente disposto nos “Termos de Uso” ou “Termos de Serviço” de qualquer jogo eletrônico.
Além disso, os esses bens digitais aqui tratados (diferentemente de NFTs ou outros) não agregam ou integram ao patrimônio do usuário, já que, por não possuir características dos bens físicos, fica impossível mensurá-los financeiramente ou considerá-los como parte do conjunto de bens daquela pessoa.
Trazendo um pouco do entendimento dos tribunais, menciono que o judiciário brasileiro por inúmeras vezes já se posicionou no sentido de que esses “bens virtuais” são de propriedade da desenvolvedora [2], que os cede aos usuários para utilização, porém apenas enquanto a plataforma (jogo) permanecer ativa e os jogadores se mantiveram atentos às regras de utilização.
Ou seja, “os créditos adquiridos pelos jogadores são (…) moedas virtuais utilizadas para aquisição de artefatos para seus personagens (…) não cabendo a restituição dos valores”. Além disso, a maioria dos julgados reforça o entendimento de que “a propriedade desses itens é exclusiva” da desenvolvedora [3].
Por fim, além da justificativa pela ótica do direito autoral, as decisões judiciais levam em consideração a liberdade contratual das partes, validando os “Termos de Uso” / “Termos de Serviço” no tocante à existência de “cláusula contratual expressa no sentido de impossibilidade de reembolso de valores pagos a título” de itens virtuais [4].
Todos conhecemos alguém que compra, vende ou de alguma forma comercializa conteúdos digitais, contas em jogos online ou bens virtuais, porém, além de ser algo expressamente vedado pela maioria das desenvolvedoras, é algo que também não se recomenda pela ótica jurídica, já que o conteúdo ali negociado não possui valor monetário e não tem como ser mensurado ou colocado em disputa judicial.
Obviamente haverá posicionamento divergente minoritário, mas conforme visto, o conteúdo digital aqui tratado não pertence aos jogadores / usuário / consumidores, sejam eles profissionais ou casuais e, em razão disso, é necessária a manutenção do dever de cuidado e atenção às regras de utilização do jogo para que o usuário possa continuar usufruindo do serviço e dos itens vinculados às suas respectivas contas, principalmente aqueles que possuem itens ou skins raríssimas dentro da comunidade.
[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Bem_virtual
[2] TJSP – Proc. 1000144-69.2017.8.26.0063 – 2ª Turma Cível e Criminal – Juiz Rel. Betiza Marques Soria Prado – Julg. 23/03/18
[3] TJMG – Proc. 9005035-77.2017.8.13.0024 – 6º Juizado Especial Cível de Belo Horizonte/MG – Juiz Napoleão Rocha Lage – Julg. 04/04/17
[4] TJ-SP – Proc. 1034811-20.2016.8.26.0224 – 17ª Câmara de Direito Privado – Des. Rel. Afonso Bráz – Julg. 18/10/2017
Marcelo Mattoso é graduado em Direito pela Unesa. É especialista em Direito Digital (Inovação e Tecnologia) pela Fundação Getúlio Vargas, entusiasta e especializado em consultoria e litígio no mercado de Games e Esports; advogado, sócio e coordenador da área de Games/Esports do escritório Barcellos Tucunduva Advogados.